“A FACE DA CORRUPÇÃO” – BAIXARIA OU QUALIDADE?
Chavões, sensacionalismo, visual banal. Não dá pra negar que
este veículo para Peter Cushing dirigido pelo especialista em apelação Robert
Hartford-Davis em 1967 tem isso tudo. Também não dá pra negar que o filme é uma
experiência única e poderosa, nem por aqueles que detestam sua força. Por que?
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A trama: Sir John Rowan, um cirurgião brilhante, tem que
matar pessoas periodicamente para extrair delas um soro capaz de restaurar o
rosto desfigurado de sua noiva – um clichê de filme de horror (“Raptor de
Noivas”, 1942, um filme B da Monogram com Bela Lugosi, é um exemplo) executado
com a mesma ênfase em cirurgia explícita vista pouco antes no respeitado “Os Olhos sem Rosto”(1959) de Georges Franju,
e já imitado no não-tão-respeitado “O Terrível Dr. Orloff” (1962), de Jesus
Franco. Sir John sai por aí carregando uma maletinha de instrumentos médicos a la
Jack, o Estripador e matando mulheres. Depois de um final explosivo, o filme,
aparentemente por falta de solução melhor, plagia o epílogo de outro clássico, “Na
Solidão da Noite” (1945), da Ealing.
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Partindo dessa plataforma surrada, o roteiro de Donald e
Derek Ford – que já tinham abordado Jack, o Estripador no ótimo “Névoas do
Terror” (1965), em que o famigerado assassino vitoriano encontra Sherlock
Holmes – se concentra em seus próprios interesses. Pra começar, caracterização
e nuances psicológicas. Sir John é um caso clínico de perfeccionismo
patológico. Antes dos créditos iniciais terminarem, nós o vemos suando na mesa
de operações, comentando que “quanto mais sucessos, mais se temem as falhas” e
cochilando numa biblioteca abarrotada dominada por um busto imponente – dele? -
à meia-luz, com um livro ainda aberto em
seu colo.
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Muitos reclamam que não faz sentido ele se apaixonar pela
vaidosa e desagradável Lynn Nolan (Sue Lloyd, da série de TV “The Baron”). Vem
cá, admitindo que esse solteirão travado de meia-idade não chegou aonde está
sem uma bela dose de renúncia pessoal, o amor de uma linda modelo muito mais
jovem que ele bastaria pra deixá-lo bobo (“obcecado” por ela, diz seu colega
Dr. Harris, com razão). Não só ele está indo atrás do tempo perdido, mas ela é
um troféu, outro “sucesso” em sua carreira. Quando o rosto dela é queimado num
acidente por culpa dele, não há do que não seja capaz para resgatá-la.
Ele não precisa matar mulheres desejáveis. É escolha.
Pode-se argumentar que são mais fáceis de dominar que um homem, mas quando a
vítima em questão é uma garota mais jovem cuja vida ainda não é “perdida”, ele
resiste. “Jurei preservar a vida, não tirá-la”, ele diz, o rosto subitamente
iluminado por um abajur. Presume-se que uma vida inteira de contenção alimentou
uma agressividade contra mulheres sexualmente excitantes. O filme não é
misógino, o protagonista sim.
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Quanto a Lynn, nem o roteiro nem a atriz força a mão em seu
papel de mulher fatal como, digamos, Hazel Court nas adaptações de Poe feitas
por Roger Corman. Acreditamos em seu tormento físico e emocional (“Gente
virando o rosto quando me vê...” Ela é modelo! Os diálogos têm a inteligência
de aproveitar a experiência profissional e de vida dos personagens para
intensificar o drama) e ela parece sincera quando diz que escolheu John pelo “homem”,
não o título ou o dinheiro. Steve Harris é um achado. Herói nominal do filme,
ele é bastante esperto para descobrir as ações e entender os motivos de John,
mas sua impertinência de Grilo Falante é ineficaz, e quando ele finalmente age
no clímax, faz de modo tão equivocado e desastrado que precipita a catástrofe.
De uma tacada, os realizadores criam um personagem verossímil, subvertem um
clichê básico e fazem um desaforo aos moralistas e censores.
O filme dá novo sentido à história velha ancorando-a
firmemente na realidade e ambientes prosaicos da “swinging London”, resultando
principalmente num contraste entre o velho mundo representado por Sir John e o
panorama emergente nos anos 60. O último ato, quando a casa é invadida por “beatniks”
(uma apropriação menos evidente, esta de “O Tesouro de Sierra Madre”, de John
Huston, mas totalmente filtrada e legitimada) é notável por mostrar cada grupo
horrorizado com o outro. O loucão Groper (David Lodge, conhecido pela série
cinematográfica “Carry On”) é uma paródia diabólica e corpulenta de John Lennon
usando um uniforme de Sgt. Pepper, só que preto, sugerindo o lado destrutivo da
vida pé na estrada. Curiosamente, Corman tinha feito o mesmo de forma diferente
em “O Segredo Negro” (1959).
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Um filme tão focado na erupção de instintos violentos em
contextos diversos não poderia ser encenado de forma suave. Sua agressividade
tem razão de ser, assim como os ambientes derrubados e ordinários.
Hartford-Davis se aproxima tanto quanto possível dos princípios expressionistas
sem fugir desses limites na grotesca distorção do semblante e do entorno do
protagonista pela lente grande-angular; na sequência de abertura com os médicos
mascarados e os equipamentos se fundindo num único mecanismo; e na imagem final
- o perturbador close dos olhos de Peter com os gritos das mulheres como trilha
sonora. A última sequência funciona menos para nos pegar com um final-surpresa
que para realçar o desequilíbrio potencial de John.O mesmo cuidado foi tomado
com as conotações simbólicas dos objetos e locais – o laser, a beira-mar, as
gaivotas voando ruidosamente...
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Por fim e não menos importante, “A Face da Corrupção” é
grande entretenimento – e MUITO profissional. Seu prosaísmo intencional não
deve ser jamais confundido com amadorismo. É, sim, um resultado deliberadamente
atingido pelo trabalho de uma equipe de alto nível, que inclui o cinegrafista
Peter Newbrook (“The Asphyx”, 1970), o compositor Bill McGuffie (cuja trilha de
jazz, indo do mais relaxante ao mais frenético é nada menos que a voz do filme)
e praticamente todo o elenco: Peter, Sue, Lodge, a emblemática e bela Kate O’Mara
no papel da heroína e, talvez especialmente, porque nunca reconhecida, Valerie
Van Ost como a vítima no trem. A moça daria uma interpretação ainda mais
notável em outro filme de Peter – “Os Ritos Satânicos de Drácula” (1973) –
passando com enorme versatilidade e facilidade de secretária introvertida a
vítima sacaninha e vampira selvagemente sensual .